quarta-feira, 8 de julho de 2020

autossabotagem - o novo acordo ortográfico (e semântico)

a escrita poética some no passar dos dias. a escrita, sim. a poesia, jamais. é preciso reparar na beleza e na feiura das coisas. nas palavras feias, mora o estilo que eu sempre odiei viver, mas sempre amei escrever. a sujeita poética era quase um vício: versos alimentados por conversas inacabadas, momentos de tensão, um tesão proibido por coisas-que-não-podiam-ser-feitas, xingamentos e lamentos. nas rimas, quase sempre pobres ou inexistentes, um saber - ou fingir - transformar toda aquela sujeira em composição literária. apesar de. mas as linhas escritas fora de mim permaneciam vazias quando a tristeza sumia, e os carinhos não viravam mais letras, ainda que sentidos. escrever com os cinco sentidos é bom, mas minhas folhas vazias ansiavam pela tinta. confesso que forjei algumas decepções, planejei grandes desastres, espirrei tinta de maneira aleatória nos cadernos velhos. me pergunto pra onde teriam ido as palavras bonitas de antes. talvez estivessem solitárias, cada uma no seu canto, esperando que um novo lápis fosse apontado para escrevê-las. mas era tanto desapontamento que não saíam mais de seus esconderijos. comecei a pensar que não seria mais capaz de contar sobre os raios de sol que entram pela janela do banheiro às quatro da tarde e tornam o banho mais agradável. o café quentinho feito por quem me acompanha todos os dias. o cheiro no cangote. o ronronar baixinho do gato que sobrou. eu saberia escrever sobre cavar um buraco no quintal e enterrar um amor, também sobre acordar com o coração acelerado no meio da noite. mas pensei que tivesse perdido a habilidade de falar sobre o abraço após o pesadelo e o carinho de despedida antes do fim. parece que não perdi. um desejo muito forte de gostar de sentir o que sinto e viver o que vivo acabou se transformando em realidade. sei que vez ou outra ele escorre pelas minhas mãos, ora em verso, ora em choro. mas começou em mim o processo de observar e organizar as palavras bonitas perdidas. a inspiração pode ter vindo de qualquer lugar do passado, presente ou futuro. pode ter vindo das linhas temporais bagunçadas que eu vi na tv, do excesso de frases terríveis que me acompanharam durante os últimos meses, do não querer mais deixar as folhas nuas. é melhor se vestir de verbos. especialmente os que são bons, casualmente os demais. repito: é preciso reparar na beleza e na feiura das coisas. mas também é preciso se demorar mais na primeira.

domingo, 6 de janeiro de 2019

tocando em frente

revisito os sentimentos
como quem não sabe o que busca
ou se busca.

sei que gosto de voltar
pra ver o que passou
(o que ficou?)

voltar trava uma guerra:
no interior
sobraram migalhas.

reler é me reconhecer:
esqueci de propósito
segui sem nenhum?

por fim
vejo que perdi
os pontos finais.

;

tocar em frente
é reaprender
a me sentir minha.



sábado, 15 de dezembro de 2018

estátua

o vento bateu a porta
repentino, incômodo
barulhento.

pensei em levantar
o ar parou de correr
desisti.

observo sentada
o ser assustado
debaixo da cama.

estátua.

um ciclo se fecha
forçado, apressado
violento.

pensei em relembrar
o peito acelerou
desisti.

observo de pé
o ser assustado
no espelho do quarto.

estátua.